A artista dos sete ofícios Maria Keil atravessou quase todo o século XX com um impulso criativo que nunca se limitou a uma única disciplina
Maria Keil pintando um painel no Cinema Monumental, em Lisboa: como muitos artistas portugueses activos na primeira metade do século XX, teve de se dedicar a outros ofícios para subsistir |
Tinha uma repartida certeira e irónica, um pouco ao jeito de
Agustina mas sem o juízo de carácter impiedoso da escritora. Se fosse viva,
teria feito 100 anos há poucos dias. É sobretudo conhecida pelos painéis de
azulejos com que revestiu as estações do Metropolitano de Lisboa na década de
50, sem dúvida os primeiros exemplares de arte pública que traziam a então
novíssima abstracção geométrica portuguesa para o dia-a-dia dos lisboetas. Era
Maria Keil (1914-2012), e a sua obra vai muito além desses notáveis padrões.
Maria Keil abrange actividades como pintora, ilustradora,
publicitária, figurinista, criadora de móveis e objectos de design,
desenhadora, escritora de livros infantis, criadora de tapeçarias e outras
ainda, difíceis de catalogar e classificar. Maria Keil, como era habitual para
os artistas portugueses activos na primeira metade do século XX, lançou mão dos
sete ofícios para viver. Na época, o mercado da arte era insuficiente para que
um artista subsistisse apenas graças à pintura ou à escultura. Todos tiveram de
trabalhar noutras áreas.
Maria Keil, que frequentou a Escola de Belas-Artes de Lisboa
na década de 30, foi casada com o arquitecto Francisco Keil do Amaral. A
convivência com arquitectos amigos do marido proporcionou-lhe encomendas para
decorações de edifícios, e foi aqui que a escolha do azulejo como material de
revestimento se impôs. Numa entrevista antiga, a artista contou-nos que, como
não havia dinheiro para a decoração do Metropolitano (Francisco Keil tinha a
seu cargo o projecto do edifício da sede), tinha pensado em criar um dado
número de padrões geométricos de azulejos que, em combinatórias diferentes,
iriam possibilitar a concretização de obras distintas para todas as estações.
Este trabalho, que em conjunto com o mural feito para um dos edifícios da
Avenida Infante Santo, também em Lisboa se tornou emblemático da azulejaria
portuguesa modernista, antecipou outros de igual relevância feitos para
decoração de interiores; salientemos desde já as tapeçarias desenhadas para
hotéis e escritórios, de que a exposição apresenta diversos cartões; ou o
mobiliário feito para a Pousada de S. Lourenço, na Serra da Estrela (de 1948,
projecto de Rogério de Azevedo), que pela primeira vez introduz uma adaptação
de motivos oriundos da arte popular ao design erudito, facto que hoje, como se
sabe, está na ordem do dia para vários criadores contemporâneos. Ao contrário
do que hoje sucede, havia na época um teórico, António Ferro, à frente dos
destinos do Serviço de Propaganda Nacional (SPN) / Serviço Nacional de
Informação (SNI), que com um saber e uma erudição inegáveis sustentava
conceptualmente o “portuguesismo” que se pretendia implantar, na adaptação
local do que se passava, de resto, em toda a Europa — sem que fosse possível
perceber então que esse intuito anunciava o fim da própria arte popular que se
pretendia ressuscitar. A exposição no Centro de Artes de Sines completa-se com
trabalhos publicitários e figurinos para a companhia de bailado Verde Gaio,
outra criação do SPN/SNI.